Evasão e Reprovação

Em uma breve introdução podemos dizer que, para todos aqueles que leram o livro “O Nome da Rosa” de Umberto Ecco, ou ainda, assistiram ao filme do mesmo nome, fica claro que o saber era propriedade de uma pequena elite que queria tornar o acesso ao mesmo o mais difícil e inóspito possível. Afinal, a frase dita por muitos é bem atual, saber é poder. Além disso, afastar a grande massa populacional do saber tornando a escola insuportável e inatingível, bem como tratando o aluno da forma mais rígida possível, e também desestimulando-o da busca do conhecimento reservada a uns poucos era o que ocorria.

No decorrer do século passado principalmente, a concepção de escola autoritária e inacessível começa a ruir, a ser demolida, violentamente, graças a diferentes contribuições científicas e com enorme ênfase, de que a aprendizagem das crianças tem características próprias, diferente da dos adultos; que o processo de aprendizagem é progressivo e cumulativo e nem sempre ocorre de forma linear, mas sim por saltos; e que o medo e a passividade não geram aprendizagem inteligente, ao contrário, são seus inimigos. Assim, a escola de relação pedagógica autoritário, elitista e excludente, até então existente, contrapunha-se a um modelo radicalmente novo, onde o ser que aprende - o aluno - passará a ser o centro do processo de aprendizagem que deverá estimular a participação, atividade, pesquisa e comportamento crítico.

No meu ponto de vista crítico. nal do saber tornando a escola iDe acordo com esta nova filosofia educacional torna-se, por exemplo, inadmissível à escola, ao final de um ano escolar, ou melhor, de meros 10 meses, considerar um aluno como inepto total porque não aprendeu o que era "idealmente" esperado, num intervalo de tempo teoricamente "ideal". Ela exige respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem, característica própria dos seres humanos.

Será impossível, pois, para a nova escola, aceitar a concepção do passado de que o aluno deve ser reprovado, se não dominou bem divisão, mesmo que tenha aprendido tudo em português, ciências, história e geografia. Para o novo modelo de escola, existe uma incompatibilidade total, uma conciliação impossível entre as idéias de respeito ao educando de Paulo Freire ou a de aprendizagem sócio-construída de Emilia Ferreiro com a prática escolar existente de que caso o aluno fosse reprovado, toda aprendizagem feita por ele durante aquele ano era praticamente desconsiderada, “apagada” de sua memória e depois refeita no ano seguinte, como se esse aluno fosse uma peça defeituosa numa linha de montagem industrial mecanizada e uma vez rotulado "repetente", o aluno passava a personificar o fracasso. No ano seguinte, era apontado como mau exemplo para os outros alunos da classe e, afastado pelos professores, sentava-se no fundo da sala. Assim estigmatizado, acabava acreditando neste papel e virando um fracasso real. Muitas vezes tinha apenas 8 ou 9 anos.

Durante todo o século passado, educadores ilustres nos legaram uma literatura educacional abundante mostrando que um aluno assim humilhado, desrespeitado e cognitivamente estuprado, passaria a comportar-se ou como um pequeno robot, amedrontado e passivo de quem a escola altera o crescimento intelectual de forma perversa, ou como um marginal revoltado que, saudavelmente, para proteger sua auto-estima agride e abandona esta escola que personaliza o mais odioso tipo de autoritarismo.

No entanto, este modelo totalmente questionado já no início do século XX - por valorizar o medo, o sofrimento, a humilhação, o fracasso - era muito apreciado e aplicado na chamada “boa” escola brasileira dos anos 50. Ele, certamente, foi um dos maiores responsáveis pelo fato chocante, que parece não fazer parte da memória dos educadores e dos meios de comunicação de massa, de que o Brasil, nos anos 50, tinha somente 36% da população de 7 a 14 anos na escola. A tão propalada boa escola de antigamente era aquela em que a maioria ficava fora e a que ficava dentro fracassava em massa. Perdas de 60% ou mais (evasão e reprovação) eram consideradas absolutamente normais. E parece existir um pouco de cinismo quando, atualmente, nos admiramos com as altas taxas de analfabetismo da população brasileira com 40 anos ou mais. Precisamos, no Brasil, ter coragem de examinar o passado, sem saudosismos elitistas. Parece-me oportuno parafrasear, aqui, o educador português Rui Canário que recentemente esteve em São Paulo num congresso educacional e que numa entrevista dada ao jornal O Estado de São Paulo (em 29/09/00) afirmou: “as pessoas criticam a educação hoje achando que ela foi melhor um dia”. Concordo com ele. Com as informações que temos hoje, só é possível defender que aquele modelo de escola excludente do passado era bom por desinformação ou má fé.

Nas três últimas décadas do século XX, a população brasileira “arrombou” as portas da escola. O crescimento das matrículas foi estrondoso. No entanto, por mais esforços que alguns educadores tenham feito, haverá muita dificuldade em mudar a cultura dessa escola elitista, autoritária, herdada do século XIX e serão usados todos os subterfúgios e práticas para afastar os alunos do acesso ao saber. A mais avassaladora delas será a reprovação, esta sim, o instrumento por excelência a serviço da ignorância e da exclusão social. Em relação ao acesso ao saber pode mesmo ser comparada aos fornos crematórios do III Reich.

Nos idos dos anos 80, foram abundantes os estudos e pesquisas mostrando os efeitos perversos e pouco producentes da reprovação. Sergio Costa Ribeiro, físico e ilustre pesquisador, precocemente afastado de nós, produziu alguns dos trabalhos mais significativos na área denunciando que o acesso finalmente conseguido pela população nas escolas públicas era enganoso, pois a soma das taxas de evasão e reprovação continuavam tão altas quanto às dos anos 50. A diferença, dizia ele, é que, agora, ao invés de milhares, eram milhões de alunos, ano a ano, sistematicamente afastados das escolas. Os estudos de Ribeiro mostraram, com clareza, que a evasão era o sub-produto das múltiplas repetências a que as crianças e jovens eram submetidos, ou seja, eles denunciavam que 50% da população escolar abandonava, evadia-se da escola depois de ter ficado de 6 a 8 anos “estacionada” na segunda ou terceira série do ensino fundamental e que de cada 100 crianças, menos de 10 completavam o ensino fundamental em 8 anos. É possível acreditar que toda a população escolar deste país estivesse retardada mentalmente frente à escola? Ainda em 1995, mais da metade de toda população brasileira de 7 anos era reprovada na primeira série. Nenhum outro país miserável da América Latina tinha estatísticas tão perversas. Entretanto, convivíamos cínica e tranqüilamente com essa situação de perdas enormes de auto-estima nacional, de capital humano e financeiro que deprimiam cada vez mais a situação educacional do país.

É inacreditável que este país tenha uma parte de sua elite tão cega e tão pouco criteriosa, incapaz de reconhecer os estragos desastrosos que esse modelo provocou e sua responsabilidade na "fuga à educação" e marginalização de grandes contingentes populacionais.

Os anos 80 e 90 também foram férteis em pesquisas sobre o rendimento escolar dos alunos associadas a um conjunto enorme de variáveis escolares e sócio-econômicas. Tive o privilégio, como pesquisadora universitária e professora doutora na área de currículo e avaliação, de participar de vários delas, juntamente com pesquisadoras ilustres como Ana Maria Poppovic, Bernardete Gatti, Guiomar Namo de Mello. Pesquisas com alunos das escolas públicas mostravam em São Paulo, bem como em outros Estados do Brasil, que a maioria deles, a cada repetência, ia tendo um desempenho cada vez pior, em decorrência das situações desestimuladoras a que eram submetidos e da diminuição significativa da sua auto-confiança como aprendiz. A maior parte das pesquisas na área apontava também que fatores como a duração do período escolar, a assiduidade dos professores, a existência de materiais didáticos na sala, a presença de coordenadores pedagógicos, bem como a garantia de aulas sistemáticas de recuperação, eram fatores muito mais determinantes no desempenho bem sucedido dos alunos.

Entretanto, raras vezes, ocorreu às elites ou administradores que dirigiam o sistema educacional, questionar o sistema secular de reprovação. Afinal, se ela fosse tão boa, já deveríamos ser um país de sábios. Somente na rede estadual paulista, no início da década de 90, cerca de 1.5 milhões de alunos, a cada ano, eram expulsos ou fracassavam na escola. Desde o final dos anos 80, os índices de evasão haviam atingido patamares absurdamente altos. E isto ocorria no mais rico e pujante Estado da América Latina, onde cerca de 90% dos professores já tinham formação universitária. Imagine a exclusão que ocorria no resto do país. E contraditoriamente, ficamos chocados com os atuais índices de violência e miséria do país, sem parecer ou querer nos dar conta de quanto tem contribuído para estes índices o modelo de escola que exclui e violenta seus alunos, com o qual temos convivido quase sem questionamento.

Vale a pena, porém, lembrar algumas tentativas feitas no Brasil, já no final do século passado, para superar este quadro calamitoso. Em 1968, o emérito professor da USP, liberal e democrata, José Mario Pires Azanha, colaborando com Ulhoa Cintra, na Secretaria da Educação, implanta pela primeira vez no Brasil, no curso primário das escolas estaduais paulistas, os chamados nível I e II, ou seja, a passagem da primeira para a segunda série sem reprovações, assim como da terceira para a quarta séries. Estávamos no apagar das luzes de um período democrático e, por coincidência, o Gabinete cai por ser considerado subversivo. Em 1984, respirando os novos ares de democracia, o Governador Montoro implanta o ciclo básico nas escolas estaduais paulistas, no que é imitado por outros Estados, inclusive Minas Gerais. O objetivo? Dar à criança a possibilidade de completar sem retrocessos seu processo de alfabetização. Há resistência dos professores que acreditam perder a autoridade por não poder reprovar criancinhas de sete anos e o Governo não dá continuidade ao processo de ciclos, como propusera inicialmente. No início dos anos 90, já com a consolidação democrática, a administração da educação municipal dirigida por Paulo Freire introduz, semelhante ao que pretendia Montoro, o sistema de 3 ciclos no ensino fundamental das escolas da capital paulista, o que também ocorre em várias outras capitais. A política de introdução dos ciclos surge e se fortalece nos raros momentos de democracia que tem ocorrido neste país. Talvez isto justifique o seu atraso. Acredito que essas eminentes figuras que propuseram a aprendizagem em progressão continuada por ciclos não são passíveis de serem identificadas como demagogos ou malandros como tentam alguns fazer parecer.

Os desafios do século XXI

Nos últimos anos do século XX, sob o impacto das enormes mudanças ocorridas na sociedade, do avanço da tecnologia e meios de comunicação de massa, da constatação cada vez mais óbvia de que a sociedade do futuro será a do conhecimento e que este determinará a riqueza das nações, é promulgada uma nova Lei de Diretrizes e Bases Nacionais (LDB) aprovada em 1996, sob a inspiração do educador Darcy Ribeiro. A nova LDB foi exaustivamente debatida pela sociedade e trouxe os primeiros ventos de modernização e real democratização para o sistema educacional brasileiro recebendo a aprovação do Congresso Nacional, das entidades de classe e de todos os diferentes partidos políticos.

É, portanto, na LDB de 1996, que já estão inscritas e garantidas as diferentes formas de organização do ensino que ampliam as possibilidades de avanço e respeito à aprendizagem dos alunos. É nela que está claramente proposta a aprendizagem em progressão continuada na forma de ciclos. Lá estão apontadas, também, as formas de fazê-lo com sucesso: ampliação da jornada escolar, a recuperação paralela e contínua dos alunos com dificuldades de aprendizagem, as horas de trabalho coletivo remunerado do professor para avaliação e capacitação; a proposta de esquemas de aceleração de aprendizagem para alunos multirrepetentes com grande defasagem idade-série; além do direito à reclassificação de estudos para todos aqueles que conseguiram aprender independentemente da freqüência às escolas. É uma lei revolucionária, que buscava provocar enormes mudanças no sistema educacional brasileiro, na medida em que refletia o espírito de seu patrono: criar condições de acesso ao conhecimento para toda a população, o que até então a escola brasileira fora incapaz de fazer.

No caso específico de São Paulo, em 1996, durante o período de discussão da LDB, algumas de suas propostas já começaram a ser postas em prática. Assim, desde o início de 1996 foram garantidas na rede estadual paulista algumas condições básicas para a melhoria do ensino, ou seja, ampliação da jornada escolar de 720 horas para 1000 horas para 90% dos alunos do diurno, e para 800 horas no período noturno; duas novas modalidades de recuperação paralela para todos os alunos com dificuldades de aprendizagem, ou seja, tanto a semanal, de 3 horas fora do horário regular de aulas, para corrigir deficiências prematuramente, como ao final do ano, no mês de janeiro, com 100 horas de duração, para os alunos faltosos ou com maiores dificuldades. Ao lado dessas medidas, foi instituído para todos os professores o pagamento de horas de trabalho na escola, porém fora da sala de aula, para capacitação e orientação sobre reforço escolar. Para que isto ocorresse, todas as escolas passaram a contar com um ou dois coordenadores pedagógicos, antiga reivindicação do magistério, de modo a acompanhar o trabalho dos professores juntamente com as Oficinas Pedagógicas, órgãos descentralizados de capacitação. O trabalho das Oficinas foi enriquecido, a partir de 1997, com os resultados do sistema de avaliação do rendimento escolar (SARESP) feito por instituições externas à administração, que serviram de suporte e tomada de decisão para os investimentos da ordem de 30 milhões de reais em cursos de capacitação de professores ofertados pelas Universidades paulistas.

Tais medidas foram provocando quedas drásticas nas taxas de evasão, deixando claro que os alunos e suas famílias percebiam quando valia a pena ficar na escola porque o aluno tinha maiores chances de se recuperar, ter sucesso e aprender.

Foi somente no início de 1998, que o Conselho Estadual de Educação, em função das mudanças ocorridas, propôs a adoção para o sistema de ensino paulista público e privado, da aprendizagem em progressão continuada. A proposta só abrangia o ensino fundamental cujos oito anos deveriam ser organizados em dois ciclos, com reprovações ocorrendo ao final de qualquer ano escolar, apenas no caso de faltas em excesso ou abandono da escola. Enfatizava, o Conselho Estadual, a importância de avaliações freqüentes e contínuas da aprendizagem para embasar as aulas de recuperação paralela ou nas férias. Ao final dos dois ciclos, caso o aluno apresentasse problemas de aprendizagem, deveria ficar retido mais um ano no ciclo para um cuidadoso trabalho planejado de recuperação. Essa proposta que é a atual, objetiva garantir às crianças paulistas a possibilidade de sucesso na escola e o respeito ao seu desenvolvimento intelectual e emocional.

No entanto, por que a organização da escola em ciclos assusta e ameaça alguns setores da sociedade?

A organização seriada, da escola que tínhamos, não levava a maioria dos alunos a aprender. As críticas à escola eram contundentes e as perdas fantásticas. A quem incomoda esta mudança? Em nome de quem e quais subterfúgios ainda serão usados para atacar o sistema de ciclos?

É preciso concordar, em primeiro lugar, que causa estranheza o fato de que a idéia de fazer uma criança continuar aprendendo, progredindo de onde parou, que é o normal para toda e qualquer aprendizagem, só na escola é encarada como uma aberração. Por que será que isto ocorre? Por que demanda uma sistemática mais trabalhosa, detalhada, cuidadosa e criteriosa de avaliação? Certamente.

A Secretaria Estadual de Educação, no entanto, desde 1984, ou seja, desde a introdução do ciclo básico, havia desenvolvido uma série de instrumentos, publicações, fichas detalhadas, programas de TV e vídeo – consubstanciados no famoso projeto Ipê – para auxiliar escolas e professores na avaliação, acompanhamento e recuperação dos alunos. Pode-se questionar se no passado existiam condições para esse tipo de avaliação. Porém, desde 1996 elas existem. São os horários de recuperação paralela semanal e ao final do ano. São as horas de trabalhado remuneradas do professor na escola, mas fora da sala de aula. É a jornada ampliada em 40% para a maioria dos alunos, bem como a capacitação dos professores feita pelas Universidades e escolhida pela própria Diretoria de Ensino e suas escolas.

Por que quando o aluno multirrepetente ficava vários anos estacionado numa mesma série ninguém se incomodava? Será por que era mais fácil camuflar o fato de que, após 5 ou 6 anos de passagem pela escola, ninguém havia, com seriedade, se responsabilizado pela aprendizagem desse aluno? Ora, haviam sido responsáveis pelo menos 5 professores, um diretor, um vice-diretor, um coordenador pedagógico, um supervisor da escola, três a quatro assistentes pedagógicos da Oficina Pedagógica local e um dirigente regional de ensino, que tem sob sua responsabilidade, em média, umas 70 escolas públicas. Um pequeno exército e o aluno era culpado e penalizado pelo fracasso. A culpa sempre acabava sendo da vítima.

O ciclo desvela a incompetência da escola e do sistema para ensinar que a reprovação mascarava. Ele não permite mais a punição unilateral, ele impede a farsa “professor finge que ensina e aluno não aprende porque não é capaz”. A progressão continuada exige, portanto, melhor trabalho coletivo da escola para garantir o sucesso dos alunos. Por quê?

O sistema seriado, com repetência ano a ano, pressupõe o trabalho do professor com classes homogêneas, pois se o aluno for repetente, o professor "zera" tudo o que aprendeu no ano anterior e parte do princípio de que, naquela série, todos são iguais, ou seja, ninguém conhece nada do conteúdo. Essa homogeneização artificial facilita o planejamento das aulas. Na progressão continuada, no início do ano, o professor precisa levar em conta o que todos já aprenderam, examinar melhor as avaliações que recebeu, as fichas de acompanhamento e saber organizar os alunos em diferentes grupos, com a noção de que, alguns deverão ser mais estimulados e reforçados para conseguirem alcançar um desempenho médio. Isto obriga todos: professores, diretor, coordenadores a organizarem, com mais critério, o planejamento pedagógico e as aulas de recuperação. Entretanto, os resultados compensam os esforços demandados.

Na reprovação, a marca do fracasso é do aluno, na progressão continuada em ciclos, a marca do fracasso é da escola, do trabalho do professor, da organização do sistema de ensino que tem de ser avaliado, questionado, revisado e repensado nos seus pontos frágeis. A cada final de ano, ou o aluno conseguiu avançar mais, aprender, ou foi a escola que ficou para trás.

É este o caminho que precisamos buscar e que devemos ter coragem de trilhar. Ser capaz de enfrentar o velho e ultrapassado mito de que a reprovação em si é boa e lutar por uma escola que seja capaz de ensinar e não simplesmente de excluir. Com as informações que possuímos atualmente, continuar com o discurso e a prática antiga de reprovar e culpar o aluno é, no mínimo cômodo, para não dizer imoral.
Finalmente, a quem interessa atribuir ao sistema de ciclos a idéia de caos e aumento da violência na escola? Aos professores? Certamente não. Os educadores, hoje, já sabem muito bem que o domínio do medo e o fantasma da reprovação podem facilitar o controle da disciplina em classe de um ou outro professor cujas aulas são desinteressantes e não motivadoras, mas de nenhuma forma garantem a aprendizagem. Além disso, no ensino médio, onde estudam os adolescentes e adultos nas faixas etárias mais velhas, o sistema de ciclos e progressão continuada não foi instituído. Entretanto, a grande queda nas taxas de evasão, ocorrida a partir de 1996, possibilitou a freqüência à escola dos jovens das camadas mais pobres da população, que anteriormente estavam fora dela condenados à marginalidade, droga, violência e criminalidade. A escola hoje tem que enfrentar essa nova realidade. Ela hoje está inserida num contexto de maior violência social. Além de aceitar o desafio de ensinar, a parcela de excluídos que, até recentemente, nem sequer adentrava suas portas, a escola hoje se depara com uma juventude cada vez mais livre, autônoma e independente, que as próprias famílias têm dificuldade de educar.

Vale lembrar que nestes últimos 5 anos ocorreu, em São Paulo, um fenômeno inédito no país. Enquanto a rede particular de ensino médio, inexplicavelmente, parou de crescer, estacionou, ficando ao redor de 300 mil alunos, a rede pública estadual cresceu cerca de 1 milhão de alunos, atingindo 2 milhões e 200 mil alunos no ano 2000. A rede estadual cresceu 3 redes particulares de ensino médio em 5 anos. O que facilitou essa explosão e mesmo concorrência com a rede privada? Não foi somente o aumento de vagas, a maior garantia de acesso.

Certamente foram decisivas algumas modificações introduzidas de 1996 em diante, como a recuperação nas férias e a matrícula por disciplina. A matrícula por disciplina possibilitou, por exemplo, a um jovem reprovado em duas disciplinas não ter que refazer aquelas nas quais fora aprovado. No ano seguinte ele avança e só refaz as duas nas quais teve desempenho insatisfatório. É um sistema semelhante ao que ocorre nas universidades. O fato dos jovens não se sentirem reprovados, já em setembro, por dificuldades encontradas em uma ou outra disciplina e saberem que poderiam contar com a recuperação nas férias de janeiro para melhorar o seu desempenho nelas e aumentar suas chances de sucesso, foi fundamental para mantê-los na escola, bem como aproximá-los da mesma. Conseqüentemente, a taxa de evasão na rede estadual caiu de 25% para 12%, tornando-se a mais baixa do país.

Talvez alguns até considerem que este jovem, mesmo trabalhando o dia todo e estudando à noite, não seja tão bom quando comparado com aqueles poucos que estudavam só no diurno (até porque não existia curso noturno público) naquela “boa” escola “pública” do passado, de quase 100 anos atrás, que era paga por muitos e usufruída só por uns poucos. Mas, por mais que interesse a alguns setores desqualificar nosso jovem, ele é extremamente melhor do que os milhões de jovens que na sua idade, ainda em passado recente, estavam fora de qualquer escola e nem sequer tinham chances de estudar e enfrentar a odiosa exclusão social deste país.

Quaisquer que sejam os medos e fantasmas das elites e seus prepostos, não é mais possível conviver com o modelo de escola e ensino que herdamos do passado. O século XXI exige uma nova escola – inclusiva, dinâmica e radicalmente diferente - que além de transmitir o conhecimento, tenha como papel primordial possibilitar uma socialização e o respeito mútuo, o desenvolvimento de valores éticos e a solidariedade, principalmente do nosso jovem, exposto hoje a uma sociedade muito mais competitiva e individualista. Na escola, ele também aprenderá o saber socialmente sistematizado, embora no futuro, graças à tecnologia moderna, ele poderá até fazer a opção de aprendê-lo, de forma inteligente, à distância, fora da escola. Conseqüentemente, a escola, assim como o professor, principalmente o da escola pública, terão de abandonar a posição de arautos do fracasso. Como qualquer bom médico, que é o que cura todos os seus pacientes, ou um bom advogado, que é o que ganha todas as causas dos seus clientes, o professor terá que rechaçar rapidamente a posição de que só é bom se reprovar, ou seja, se não for capaz de fazer aquilo que dele se espera e para o qual foi preparado – ensinar. Uma postura assim elitista e antidemocrática não terá mais lugar no século XXI e se levada às últimas conseqüências poderá, de forma antropofágica ser, lamentavelmente, o próprio fim da escola e da profissão. Essas são mudanças de cultura, de postura, difíceis de serem ultrapassadas devido ao teor altamente ideológico e emocional que possuem, pois implica em perda de poder. Mas elas devem ocorrer, com urgência, se quisermos preparar nossos jovens para o novo século. Já estamos com uns 100 anos de atraso. Resta ter coragem para deixar de usar a escola como instrumento de elitização e exclusão do saber. Resta não ter medo do desafio de ensinar os excluídos que estão chegando na escola. Resta acreditar com Rui Canário em que “a idade de ouro da educação ainda está por vir“. E isto vale principalmente para nós, no Brasil, que, só agora, conseguimos colocar a totalidade de nossas crianças e jovens nas escolas.

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