O documento inicial da ONU para a conferência
Rio+20, a realizar-se em junho - comentado neste espaço na semana passada
(20/1) -, menciona a necessidade de, na busca de um novo modelo de governança
para o planeta, respeitar os direitos de comunidades indígenas, "que têm
seus modos sustentáveis de uso de recursos naturais frequentemente
marginalizados", levando-as a "altas taxas de pobreza". Não é
uma afirmação gratuita. Vários estudos internacionais e brasileiros - inclusive
do nosso Ministério do Meio Ambiente - mostram que os formatos mais adequados
para a conservação da biodiversidade está nas áreas indígenas, mais eficazes
até que os de áreas protegidas por lei. E isso é vital num momento em que
vivemos uma crise global de recursos naturais, com mais de 30% das áreas da
biodiversidade já perdidas, num caminho que só avança. E ainda com ameaças
permanentes às áreas indígenas - já demarcadas ou não -, quando se deveria
pensar em ampliar a proteção.
É questão de muitos séculos, que vem desde a época
do "descobrimento". E que levou o antropólogo Lévi-Strauss, num de
seus livros, a perguntar por que os "índios" brasileiros, que eram
milhões, não massacraram os portugueses recém-chegados, que eram umas poucas
centenas. Mas, ao contrário - como já foi lembrado aqui -, eles os trataram
como fidalgos. Porque, diz Lévi-Strauss, na cosmogonia desses povos, a chegada
do outro está sempre prevista. E esse outro é o limite da liberdade de cada
indivíduo, porque tem os mesmos direitos que ele. Precisa ser respeitado.
Um forte exemplo das consequências dessa relação
entre colonizadores e "índios" está no recém-lançado livro Rio Doce -
A Espantosa Evolução de um Vale (Editora Autêntica), no qual o jornalista Marco
Antônio Tavares Coelho decifra o aparente enigma de essa vasta parte de Minas
Gerais haver permanecido durante séculos à margem da evolução que ocorreu no
restante do território. Basicamente, porque a Coroa portuguesa quis deixar
isolada essa porção, para não ser alvo da cobiça de outros colonizadores (a
rainha Maria, a Louca, chegou a decretar a extinção ali das fábricas de
tecidos). E porque, para manter o quadro que a beneficiava, bem como aos
senhores de vastas extensões de terra, classificava como "botocudos"
e "antropófagos" os "índios", por isso quase exterminados
ao longo do tempo. Além de entender que a Mata Atlântica era fonte de "pestes"
terríveis.
O panorama, mostra o livro, só começou a mudar no
final do século 18, quando se pensou que a mineração estava esgotada em outras
áreas do País e as migrações internas passaram a se concentrar no vale. A
ocupação acentuou-se a partir da segunda década do século 20, com a forte
concentração de poderosas empresas mineradoras e siderúrgicas nacionais e
transnacionais. O modelo energético escolhido para a siderurgia - carvão -
levou ao rápido avanço da derrubada da Mata Atlântica e do Cerrado, para o qual
contribuiria também a transformação do Porto de Vitória no maior ponto de
exportação de madeira no mundo.
Mas cerca de 200 municípios à margem da BR-040
(direção Rio-Brasília) permaneceram com altas taxas de pobreza, semelhantes às
do Nordeste, e desertificação progressiva, enquanto do outro lado da rodovia
pareciam seguir o modelo paulista. O modelo agropecuário, já observava
Saint-Hilaire - que viajou pela região da Serra da Canastra na segunda década
do século 19 -, "é baseado na destruição das florestas". E,
acrescenta o autor do livro, no "genocídio dos botocudos", que
"ocupavam um imenso território dos chamados sertões do Leste, nos vales
dos Rios Mucuri, Doce e Jequitinhonha", que permaneceu intocado "até
o início do século 19 por ser considerado 'zona proibida' pela Coroa
portuguesa", que não podia "ser franqueada aos civilizados".
Para a dizimação dos indígenas contribuiu fortemente a transmissão, pelos
"civilizados", de doenças para as quais os antigos moradores não
tinham defesas orgânicas. Há notícias até da inoculação proposital de sarampo
em índios.
É útil e esclarecedor o histórico que o livro traz
sobre a evolução da siderurgia no vale e os problemas dos modelos utilizados,
até com subsídios oficiais para o reflorestamento com eucaliptos pós-derrubada
da vegetação originária. Assim como os problemas gerados pelo modelo na área
"ambiental", inclusive nos recursos hídricos, largamente utilizados -
modelo que se repetiria depois na Amazônia. E que na parte de Minas retratada
inclui áreas em desertificação, lagoas eutrofizadas, nascentes desprotegidas,
retirada de mais de 90% da cobertura vegetal, poluição gerada pela deposição de
resíduos industriais e domésticos, uso descontrolado de agrotóxicos,
desequilíbrios causados pela implantação de barragens, inundações, escassez de
água em alguns municípios. E tudo resultando em índices de desenvolvimento
humano abaixo da média nacional. As águas na região, diz um relatório de 2007
do Instituto Mineiro de Gestão das Águas, têm altos índices de contaminação por
alumínio, fósforo, manganês, ferro, óleo e graxas, cobre, arsênio, além de
coliformes fecais (parte dos esgotos de estações de tratamento).
Nestes tempos de hoje, caracterizados pela escassez
progressiva de recursos naturais - reconhecida agora mesmo pelos economistas
mais conservadores -, é decisiva uma reflexão mais aprofundada, como propõe o
livro, sobre essa extensa região brasileira, com seus recursos minerais e seus
remanescentes de Mata Atlântica e Cerrado. O futuro passa por aí, têm dito
muitos estudiosos ao discorrerem sobre a privilegiada situação brasileira.
Lembrando, como propõe Marco Antônio Tavares Coelho, que é preciso pensar no
importante papel das nações indígenas e de seus modos de viver - que, como diz
no livro o competente Ailton Krenak, "estão sendo jogados num
liquidificador", por nossas políticas que induzem uma aculturação
disfarçada.
Washington Novaes, jornalista - O
Estado de S.Paulo
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