O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado
pelo ex-ministro da Educação Paulo Renato de Souza, em 1998, como parte de um
esforço para melhorar a qualidade das escolas desse ciclo educacional. Para
isso precisava de um instrumento de avaliação do aproveitamento dos alunos ao fim
do terceiro ano para subsidiar reformas no sistema. Iniciativas desse tipo
também foram adotadas para o ensino fundamental e o universitário. Nada mais
adequado que conhecer melhor o seu produto para adotar as terapias adequadas. O
principal benefício para o estudante era avaliar o próprio conhecimento.
O Enem é uma prova voluntária e de caráter
nacional. As questões são as mesmas em todo o Brasil. Sua expansão foi rápida:
até 2002, cerca de 3,5 milhões de alunos já tinham sido avaliados. Note-se que
Paulo Renato chegou a incentivar as universidades a levarem em conta o
resultado do Enem em seus respectivos processos seletivos. Em 2002, 340
instituições já faziam isso.
Ainda que o PT e seus sindicatos tivessem combatido
o Enem, o governo Lula manteve-o sem nenhuma modificação até 2008, quando o
Ministério da Educação (MEC) anunciou, pomposamente, que ele seria usado como
exame de seleção para as universidades federais, o que "acabaria com a
angústia" de milhões de estudantes ao pôr fim aos vestibulares tradicionais.
A partir dessa data, dados os erros metodológicos, a inépcia da gestão e o
estilo publicitário (e só!) de governar, armou-se uma grande confusão: enganos,
desperdício de recursos, injustiças e, finalmente, a desmoralização de um exame
nacional.
O Enem, criado para avaliar o desempenho dos alunos
e instruir a intervenção dos governos em favor da qualidade, transformou-se em
porta de acesso - ou peneira - para selecionar estudantes universitários. Uma
estupenda contradição! Lançaram-se numa empreitada para "extinguir os
vestibulares" e acabaram criando o maior vestibular da Terra, dificílimo
de administrar. A angústia de milhões de candidatos, ao contrário do que
anunciou o então ministro Fernando Haddad, cresceu, em vez de diminuir. E por
quê? Porque a um engano grave se juntou à inépcia.
Vamos ao engano. Em 2009 o Enem passou a usar a
chamada Teoria da Resposta ao Item (TRI) para definir a pontuação dos alunos,
tornados "vestibulandos". Mas se recorreu à boa ciência para fazer
política pública ruim. A TRI mede a proficiência dos alunos e é empregada no
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Sabe) desde 1995, prova que não
seleciona candidatos - pretende mostrar o nível em que se encontra a educação,
comparar as escolas e acompanhar sua evolução, para orientar as políticas
educacionais.
Como o Enem virou prova classificatória, o uso da
TRI, que não confere pontos aos alunos segundo o número de acertos (Teoria
Clássica dos Testes), renovou a "angústia". O "candidato"
não tem ideia de que pontuação lhe vão atribuir porque desconhece os critérios
do examinador. Uma coisa é empregar a TRI para avaliar o nível dos jovens;
outra, diferente, é fazer dela um mistério que decide seu destino. Na verdade,
o "novo" Enem passou a usar a TRI para, simultaneamente, selecionar
alunos, avaliar o desempenho das escolas, criar rankings, certificar jovens e
adultos que não completaram o ensino médio e orientar o currículo desse ciclo.
Não há exame no mundo com tantas finalidade discrepantes.
A Teoria Clássica dos Testes não distingue o acerto
derivado do "chute" do decorrente da sabedoria. A TRI pode ser mais
apropriada como forma de avaliar o nível da educação, mas como critério de
seleção vira um enigma para os candidatos. Os vestibulares "tradicionais",
como a Fuvest, costumam fazer sua seleção em duas etapas: uma primeira rodada
com testes e uma segunda com respostas dissertativas - que não comportam o
chute.
O Enem-vestibular do PT concentrou, ainda, na prova
de redação a demonstração da capacidade argumentativa do aluno. Além de as
propostas virarem, muitas vezes, uma peneira ideológica, assistimos a um
espetáculo de falta de método, incompetência e arbítrio. O País inteiro soube
de um aluno, em São Paulo, que recorreu à Justiça e sua nota, de
"anulada", passou para 880 pontos - o máximo é mil. Outro, ao receber
uma explicação de seus pontos, constatou um erro de soma que lhe roubava 20
pontos. Outros 127 estudantes conseguiram ter suas notas corrigidas. Atentem
para a barbeiragem técnica: nos testes, recorre-se à TRI para que o
"chute" não tenha o mesmo peso do acerto consciente, mas o candidato
fica à mercê de uma correção marcada pelo subjetivismo e pelo arbítrio.
É conhecida também a sucessão de outros problemas e
trapalhadas: quebra do sigilo em 2009, provas defeituosas em 2010 e nova quebra
de sigilo em 2011. Além disso, os estudantes que, via Justiça, cobram os
critérios de correção das redações costumam receber mensagens com erros
grotescos de português. Todos nós podemos escorregar aqui e ali no emprego da
norma culta. Quando, porém, um candidato questiona a sua nota de redação e
recebe do próprio examinador um texto cheio de erros, algo de muito errado está
em curso.
Se o MEC queria acabar com os vestibulares, não
poderia ter criado "o" vestibular. Se o Enem deve ser também uma
prova de acesso à universidade, não pode ser realizado apenas uma vez por ano -
prometem-se duas jornadas só a partir de 2013. A verdade é que o governo não
criou as condições técnicas necessárias para que a prova tivesse esse caráter.
A quebra de sigilo em 2011 se deu porque questões usadas como pré-testes foram
parar na prova oficial. O banco de questões do Enem não suporta a demanda. O PT
esqueceu-se de cuidar desse particular no afã de "mostrar serviço" -
um péssimo serviço!
O ex-ministro Haddad, antes de deixar o cargo,
fingiu confundir a crítica que fizeram a seu desempenho com críticas ao próprio
Enem, o que é falso. Talvez seu papel fosse mesmo investir na confusão para
tentar apagar as pegadas que deixou. O nosso papel é investir no
esclarecimento.
José Serra, ex-prefeito e
ex-governador de São Paulo - O Estado de S.Paulo
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